Por conta da minha pesquisa a respeito da Coreia do Sul, tenho também me inteirado sobre a literatura do país, e descoberto algumas produções fascinantes. Uma delas são as Histórias em Quadrinhos da quadrinista Keum Suk Gendry-Kim, que traz em suas histórias narrativas extremamente pessoais e de cunho quase jornalístico de momentos históricos e sociais de seu país.
Escolhi dois títulos que li e estão traduzidos e disponíveis no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim, com uma diagramação primorosa que faz jus ao conteúdo da autora.
GRAMA traz a história real da sul-coreana Lee Sun-Ok, uma das mulheres de conforto sobreviventes do período de dominação japonesa. A autora pôde entrevistá-la e decorre a narrativa sobre uma das cicatrizes mais dolorosas que a Coreia carrega e que sustenta seu ódio pelo Japão.
Em um período de fragilização política da Coreia, o Japão conquista o território, transformando seu país em uma colônia, em 1910. Daquele momento em diante, os japoneses impuseram sua cultura e regras sobre os coreanos, oprimindo a população e os fazendo passar por duas Guerras Mundiais em favor do exército japonês. Na 2ª Guerra Mundial, além de enviar os homens coreanos para campo de batalha, as mulheres foram usadas como prostitutas dos soldados, sendo sequestradas de suas casas e abusadas por japoneses. Essas mulheres foram conhecidas como "mulheres de conforto", e por muito tempo sua história foi pouco comentada, por conta da vergonha e desonra que passaram após o período de guerra e a derrota japonesa, pois o corpo maculado representava desgraça a sua família, e muitas sequer foram recebidas de volta, acabando abandonadas a própria sorte.
As sobreviventes que restaram até hoje lutam por uma restituição do governo japonês, tanto por um pedido de desculpa público, quanto pelo pagamento de um valor que as ajude a se manter, já que muitas não conseguiram manter uma vida digna por causa de seu passado. Seus pedidos sempre são ignorados por questões diplomáticas, e o Japão nunca se curvou em perdão pelo que afligiram à Coreia.
E caso não saibam, é este período histórico que mantêm os atritos tanto da Coreia do Norte quanto a do Sul com o Japão na atualidade.
Dito isso, o conteúdo da graphic novel de Keum Suk Gendry-Kim traz a tona o assunto, com traços marcantes e uma narrativa íntima de sua entrevistada, contando como acabou sendo forçada a ser uma mulher de conforto, sua relação com outras coreanas em mesma situação e o que aconteceu após a derrota japonesa. Ao mesmo tempo, a personagem também comenta brevemente sobre a relação deste passado no presente, demonstrando como ainda carrega força para discussão nos dias de hoje.
Já A ESPERA mistura a história de três personagens reais em uma só na obra, representada por sua mãe (que é uma das figuras reais, inclusive) para contar o passado das famílias separadas pela Guerra das Coreias (1950-1953), que dividiu o país em dois, entre Norte e Sul.
Aqui, apesar de ainda sustentar contorno de uma narrativa real, permite mais liberdade à autora em representar o passado de sua mãe, que, casada com um homem e vivendo ao Norte do país, se vê obrigada a fugir em direção ao Sul, fugindo da invasão dos exércitos russo e americano. Nesta jornada, ela se dispersa de seu esposo e seu filho, perdendo-os para sempre, e precisando recomeçar no Sul, com uma nova família, tentando ainda reencontrar seu filho mesmo depois de muitos anos, durante o processo de seleção de reencontros familiares das duas Coreias.
Esta graphic novel revive uma questão que muitos ouvem falar mas pouco entendem, que é a relação das duas Coreias. O que aconteceu durante a guerra e com os cidadãos, especialmente, está sendo esquecido porque a geração que viveu essa separação está morrendo, e logo não se pensará mais em uma reunificação ou até mesmo no sentimento destes coreanos que não sabem o que houve com pessoas queridas quando a Zona Desmilitarizada foi estabelecida. Essa relação de passado e presente é trazida mais uma vez por Keum Suk Gendry-Kim, ao contar como se dão esses reencontros e qual a sensação de moradores do Norte e do Sul em reverem irmãos, por exemplo, depois de 60 anos. É emocionante, mas ao mesmo tempo triste, porque provavelmente nunca mais se encontrarão.
E penso que a lição desta HQ, que possui um tom mais familiar para a quadrinista, é que mesmo que pareça impossível, os coreanos não devem parar de tentar reaver seus amados ao Norte. Não é uma questão política aqui, mas sim de serem igualmente coreanos, ligados por sua origem.
Não a toa a quadrinista carrega tantos prêmios, como o Harvey Awards na categoria de melhor livro do ano (2020). A forma como conta a história do seu país, e especialmente das mulheres coreanas, é de uma sensibilidade singular e forte, reforçando não apenas a memória nacional a ser preservada, mas também sua relação com cada sul-coreano no presente.
Eu acredito no poder da História em Quadrinhos acessibilizar a história real, e essas duas obras me provam que estou certa. E recomendo para quem quer conhecer mais da Coreia além do Pop, mas com mais sensibilidade sobre os coreanos em si.
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